O Suplício do Papai Noel

Daniel de Lucca
7 min readNov 3, 2020

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Esse texto é uma adaptação para o Medium de um trabalho que fiz a partir do artigo “Papai Noel supliciado”, Lévi-Strauss, para a matéria “Antropologia do Consumo” ministrada na graduação pelo Prof. Dr. Wilian Corbo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O artigo “Papai Noel supliciado” foi publicado originalmente em 1952, na França, e começa com o excerto de um Jornal da época relatando um fato polêmico, causador de rebuliços na sociedade francesa da época. Pouco tempo antes do Natal, membros da Igreja de Dijon — 250 crianças do patronato, padres e pais — organizaram publicamente um suplício inusitado até mesmo para os franceses. A vítima? Ninguém mais ninguém menos que um boneco do bom velhinho.

Le Père Noël brûlé sur le parvis de la cathédrale Saint-Bénigne en 1951. Photo archives LBP.
Le Père Noël brûlé sur le parvis de la cathédrale Saint-Bénigne en 1951. Photo archives LBP

A reclamação dos denunciantes religiosos, católicos e protestantes, era fundamentada no argumento de que, de uns tempos pra lá, especialmente após a relativa recuperação econômica francesa com aplicação do Plano Marshall, estaria ocorrendo uma “”paganização” inquietante da festa da Natividade, desviando o espírito público do significado propriamente cristão desta comemoração, em proveito de um mito sem valor religioso”. Após a execução, um comunicado da igreja de Dijon dizia: “Para nós, cristãos, a festa de Natal deve continuar sendo a festa de aniversário do nascimento do Salvador”.

Strauss, à época em que escreveu o artigo, encontrava-se em um contexto de transição do rito natalino na França, em que a figura de Jesus Cristo ia gradativamente perdendo espaço nas últimas semanas do ano para o bom velhinho.

Lévi-Strauss em seu escritório em São Paulo, 1935. No livro “Tristes Trópicos” o autor conta sobre os desafios da criação da Universidade de São Paulo (USP) e da pesquisa etnológica no Brasil.

Como era de se esperar, a execução pública e simbólica do Papai Noel causou reações contrárias à da igreja. De acordo com o pesquisador, a maior parte dos jornais, com “cuidadosa sensibilidade” , disseram: “é tão bonito acreditar em Papai Noel; isto não faz mal a ninguém; as crianças têm nisso um enorme prazer; fazem disso uma deliciosa provisão de lembranças para quando forem adultos…”. Contudo, para o Antropólogo, essa explicação era insuficiente e passava longe de um dos problemas que ele busca explicar ao longo do artigo (clique aqui): a questão ali era menos a razão pelas quais as crianças gostam do Papai Noel e sim o porquê de os adultos o terem inventado.

Quem se aventurar na leitura do texto original, notará a animação do autor, também um Etnólogo, ao observar o surgimento de um rito em sua própria sociedade. Para analisa-lo, ele dá valor aos aspectos culturais de 1) Difusão e de 2) Convergência no Natal francês. O primeiro, de difusão, ele atribui à influencia americana em seu atual país, recém saído da segunda guerra mundial e então inundado de propagandas, produtos, romances e cinema estadunidenses. Interessante destacar aqui que “Costumes importados dos Estados Unidos se impõem até em camadas da população que não estão conscientes da origem dos mesmos. Os meios operários, onde a influência comunista tenderia a desacreditar tudo o que apresenta a marca made in USA, adotam tais costumes com a mesma facilidade que as demais camadas sociais.”. A explicação escolhida pelo autor é o conceito de “difusão por estímulo”, de Kroeber: “o uso importado não é assimilado; desempenha papel de catalisador, isto é, apenas por sua presença suscita a aparição de um uso análogo, que já estava presente em estado potencial no segundo ambiente”.

E o segundo, o fenômeno cultural de convergência, possui raízes multiculturais que remetem figuras como a do Santa Clauss, São Nicolau e o interessante Abade do Desgoverno; e outras celebrações presentes na idade média e na Roma antiga, como as Saturnálias. De acordo com Lévi-Strauss: “o Natal é essencialmente uma festa moderna, apesar da multiplicidade de suas características arcaizantes. […] O desenvolvimento moderno não inventa, porém: ele se limita a recompor com peças e fragmentos uma velha celebração, cuja importância nunca foi totalmente esquecida

“Ave, Caesar! Io, Saturnalia!”, quadro de Sir Lawrence Alma-Tadema, 1880

“Quando se examinam os fatos mais de perto, surgem certas analogias de estrutura igualmente notáveis. Como as Saturnais romanas, o Natal medieval oferece duas características sincréticas e opostas. Em primeiro lugar, é uma reunião e uma comunhão: a distinção entre as classes e os estratos é abolida temporariamente, escravos ou servos sentam-se à mesa dos senhores e estes se tornam criados daqueles; ricamente postas, as mesas estão abertas a todos; os sexos trocam as roupas. Ao mesmo tempo entretanto, o grupo social se cinde em dois: a juventude se constitui em corpo autônomo, elege seu soberano, o abade da juventude — ou, como na Escócia, o abbot of unreason — e, como este título indica, entrega-se a uma conduta irracional, que se traduz em abusos cometidos contra o resto da população. Tais licenças assumiam as formas mais extremas até a Renascença: blasfêmias, roubos, violações e mesmo assassinatos”.

Começa então no texto uma reflexão sobre qual categoria de tipificação religiosa convém encaixar o Papai Noel: “Não é um ser mítico, pois não há um mito que dê conta de sua origem e de suas funções; ainda menos é um personagem de lenda, pois nenhum relato semi-histórico lhe está associado. Na verdade, este ser sobrenatural e imutável, eternamente fixado na sua forma e definido por uma função exclusiva e por um retorno periódico, descende principalmente da família das divindades. Recebe, aliás, um culto por parte das crianças, em certas épocas do ano, sob a forma de cartas e de pedidos. Recompensa os bons e exclui os malvados. É a divindade de uma classe de idade de nossa sociedade — classe esta que a própria crença em Papai Noel basta para caracterizar. A única diferença em relação a uma divindade verdadeira é que os adultos não acreditam em Papai Noel, embora estimulem suas crianças a crer nele e sustentem esta crença por um grande número de mistificaçõe.” . O Papai Noel seria, então, a) manifestação de uma condição social distinta entre adultos/adolescentes de um lado e crianças do outro e b) personagem e agente de um rito de passagem da nossa sociedade “cuja função prática é ajudar os mais velhos a manter os mais novos na ordem e na obediência” .

O conhecimento quase que enciclopédico dos(as) etnógrafos(as), uma vez ou outra, sempre acaba por surpreender o leitor ou leitora. Aqui, com Strauss, e de maneira que eu não conseguiria escrever sem transcrever as palavras dele, o autor conta a semelhança do Natal com um Ritual dos Indígenas Pueblo, então localizados no sudeste dos Estados Unidos:

“Como não registrar a analogia que existe entre Papai Noel e os katchina dos índios do sudeste dos Estados Unidos? Trata-se aqui de personagens fantasiados e mascarados, que encarnam deuses e ancestrais; retornam periodicamente para visitar a aldeia, para dançar, para punir e premiar as crianças; dá-se um jeito para que estas não reconheçam seus pais ou parentes sob o disfarce tradicional.

[…]Tomemos como exemplo o ritual dos índios Pueblo, de que já falamos. Se as crianças são mantidas na ignorância da natureza humana dos personagens que encarnam os katchina, é apenas para que os temam ou respeitem, e para que se comportem de modo compatível? Sim, sem dúvida. Mas esta é apenas a função secundária do ritual, pois há uma outra explicação que o mito de origem traz perfeitamente à tona. Este mito explica que os katchina são almas das primeiras crianças indígenas, que se afogaram dramaticamente em um rio no tempo das migrações ancestrais. Os katchina são, portanto, ao mesmo tempo, prova da morte e testemunhas da vida após a morte. Mas há mais: quando os ancestrais dos indígenas atuais finalmente se fixaram em sua aldeia, relata o mito que os katchina retornavam a cada ano para os visitar, levando crianças ao partir. Desesperados por perderem sua prole, os indígenas conseguiram, então, a anuência dos katchina em permanecer no outro mundo, em troca da promessa de os representar todos os anos por instrumento de máscaras e de danças. Se as crianças são excluídas dos mistérios dos katchina, não é, nem em princípio, nem principalmente, para as amedrontar. Diríamos, antes, que é pela razão inversa: porque as crianças são os katchina. Elas são excluídas da mistificação porque representam a realidade com a qual a mistificação constitui uma espécie de compromisso. O lugar delas é alhures: não com as máscaras e com os vivos, mas com os deuses e com os mortos; com os deuses que são os mortos. E os mortos são as crianças.”

Drawings of kachina dolls, Plate 11 from an 1894 anthropology book Dolls of the Tusayan Indians by Jesse Walter Fewkes

O autor crê que essa interpretação pode ser generalizada para outros ritos de iniciação: além, num lugar mais profundo que a oposição adultos e crianças, estaria a oposição mortos e vivos, que também se complementam. Mais especificamente no Natal e no Ano Novo, existem elementos do ritual que reforçam a ideia de uma “festa dos mortos”: “a festa dos mortos é essencialmente a festa dos outros, já que o fato de ser outra é a primeira imagem aproximada que se pode fazer da morte.”

De maneira provocativa, depois de desembaraçar algumas das razões pelas quais os adultos inventaram e mantem a invenção do Papai Noel, Lévi-Strauss conclui:

“A crença que incutimos em nossas crianças, de que os brinquedos provêm do Além, oferece um álibi ao movimento secreto que de fato nos incita a oferecê-los ao Além sob pretexto de os ofertar às crianças. Por este meio, os presentes de Natal permanecem um sacrifício verdadeiro à doçura de viver — que consiste, antes de tudo, em não morrer. Com muita profundidade Salomon Reinach escreveu certa vez que a grande diferença entre as religiões antigas e as modernas está no fato de que “os pagãos suplicavam aos mortos enquanto os cristãos rogam pelos mortos”. Sem dúvida, há uma distância entre a prece aos mortos e esta prece toda misturada com conjurações que a todo ano, cada vez mais, dirigimos às crianças — encarnação tradicional dos mortos — para que, acreditando em Papai Noel, consintam em nos ajudar a acreditar na vida.”

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Daniel de Lucca

Estudante de Ciências Sociais e Direito. Gosto de árvores, política, literatura e poesia. Cuido de plantas e de abelhinhas. Conexão SP — RJ.